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Quais camadas são escondidas por um jardim que traz, em seu nome, a pretensão de um livre acesso? Será que pode ser celebrado como o primeiro parque público do Brasil? Se esse país tem a expertise de mascarar exclusões por meio de nomes como “público”, “popular” e “plural”, esse empreendimento aponta a via seminal dessa dinâmica em dimensões territoriais, ainda no Séc. XVIII. As modificações radicais dos projetos, as degradações por abandono e os múltiplos desaparecimentos, enquanto elementos mapeáveis e identificáveis nesse espaço são quase uma metáfora, pois se constituem como um microcosmo que representa a forma como a história de todo um país foi construída. 

Nas abordagens acadêmicas do campo da arte, o Passeio Público é usado para identificar a sobreposição de um jardim francês por um inglês, estilos que são anexados neste território com a intenção de incorporar saberes de pretensões universais. Ironicamente, é justamente naqueles fatos que não foram considerados relevantes para a história oficial – ou para as análises formais e estilísticas – que se constituem os principais condutores das poéticas exploradas na exposição Passeio Público: a presença das sociedades tupinambá que chegaram neste território em busca da terra mítica Guajupiá, a reminiscência de uma importante lagoa que ali foi aterrada, a circulação das mulheres negras que ali trabalhavam e agenciavam táticas de vida, a negritude de Mestre Valentim e do pintor Leandro Joaquim, a identidade da única escultora mulher a compor o espaço com uma obra, a moralidade que tenta ocultar a presença da população LGBTQIA+, as vidas diminutas – fauna e flora – que são devastadas, negligenciadas e atropeladas pelas dinâmicas de uma cidade em desenvolvimento. 

Das disputas territoriais

Território e disputa são termos quase indissociáveis na história da humanidade. No contexto do Rio de Janeiro, percebemos uma epítome das investidas coloniais que, entre idas e vindas no tempo, se tornam cada vez mais sofisticadas, embora nunca triunfantes. Pouco a pouco, essa terra foi mutilada e enxertada para acomodar os modos de vida alienígenas, daqueles que a invadiram e exploraram seus recursos, desestruturando outras sociabilidades que aqui se organizavam, principalmente aquelas não-brancas.

A cada modificação radical, vai se construindo uma cenografia imageticamente e conceitualmente deslocada desses assentamentos, como uma bela capa cheia de padrões estéticos e ornamentos que, em seu interior, esconde torturas e massacres. Atrai, assim, uma sociedade de aspirações europeias que não deseja encarar de frente as imagens, os cheiros e os sons provocados pelos atos de crueldade que sustentam suas riquezas. Podemos apontar o desmonte do Morro das Mangueiras para o aterramento da Lagoa do Boqueirão como um dos primeiros atos institucionalizados de um processo higienista realizado com o argumento da prevenção de doenças por conta da insalubridade de suas águas. O Passeio Público foi construído exatamente em cima desse aterro, como o primeiro parque público do país. Junto a isso, acontece o processo de gentrificação do espaço, com a população pobre do entorno sendo forçada a deixar suas casas para dar lugar aos nobres interessados no lazer que o jardim proporcionava.

Durante o processo de conclusão das obras do parque – projetado, ornamentado e, certamente, construído por mãos negras – Leandro Joaquim devolve para o espaço, entre suas pinturas ovais, uma rememoração, então recente, da Lagoa do Boqueirão. Na pintura Lagoa do Boqueirão e Aqueduto da Lapa os protagonistas são pessoas negras que circulam por esse território, trabalham e sofrem cenas de exploração, mas também vivem romances e momentos de lazer. Na exposição Passeio Público, dois artistas trabalham com esse importante elemento para revirar memórias e restituir os saberes que reverenciam e tornam possível a convivência com um corpo d’água tão excepcional, como uma lagoa que troca suas águas com o mar. Mariana Maia, em Olossá (2023), evoca a Orixá iorubana correspondente a essas águas. Com a proposta de lavar a roupa suja da história, a artista traz para o centro de sua instalação, dentro do suporte de uma bacia, justamente a figura de uma mulher negra presente na tela do pintor carregando um cesto com roupas na cabeça, reivindicando o reconhecimento da circulação e do trabalho desse grupo social neste território. Denilson Baniwa, por sua vez, cava um pouco mais fundo na cronologia linear e, em Lagoa do Boqueirão antes da Lapa, releva a lagoa do território tupinambá, que ainda não era vítima de acusações de insalubridade, era o berço de espécies nativas e contribuía para o estado de bem-viver que era buscado por esses povos.

Apontar esses pertencimentos pregressos das identidades que, em algum momento foram vetadas ou afastadas do seu usufruto do Passeio Público é uma abordagem que suspende as fronteiras entre passado, presente e futuro, uma vez que as rupturas territoriais são constantemente reelaboradas na experiência das coletividades racializadas. É devolver, também, uma historicidade que foi negada.

Do veto ao público

Existe uma percepção coletiva de que os processos de exclusão, na história do Brasil, se deram de forma sutil, em papéis sociais que eram estabelecidos de forma subentendida e que cada um, possivelmente, saberia qual lugar ocupar na sociedade. A verdade é que as identidades indesejadas pelo projeto de branqueamento intelectual, artístico e racial, nunca fizeram acordos de subalternidade e sempre emergiram nos espaços que se pretendiam elitizados. Nunca permitimos que a elite seguisse seu caminho em nossos ombros de forma confortável. 

Com a reforma elaborada pelo do paisagista francês Auguste François Marie Glaziou (1828-1906), inaugurada em 1862, o parque que antes era aberto e sofria um “estado de abandono” provocado por presenças indesejadas, recebeu grades de ferro. Algumas sequer estavam prontas no dia de sua abertura, então essas lacunas foram preenchidas com tapumes de madeira. Na ocasião da reabertura do Passeio Público, o escritor Moreira de Azevedo publica uma descrição detalhada do novo empreendimento, da qual destaco o trecho autoexplicativo: “É vedada a entrada a animais daninhos de qualquer natureza, às pessoas ébrias, loucas, descalças, vestidas indecentemente e armadas, a escravos, ainda que decentemente vestidos, quando não acompanharem crianças de que sejam aias ou amas (…)”.

A artista Bárbara Copque, tomando como gancho “a baobá”, árvore ancestral africana do Tempo, presente no Passeio Público, traz à tona as memórias daqueles que não puderam acessar esse espaço de lazer e descanso. Em ao tempo, o de engraxar (2016 – 2023), nos lembra o fato de que, nesse contexto, pessoas negras eram duplamente vetadas de frequentar o espaço: ser escravizada e descalça era quase uma redundância, já que esse item da vestimenta era proibido para tais pessoas. Devemos considerar, ainda, todos os critérios subjetivos que facilmente eram aplicados a pessoas racializadas, como a loucura, a embriaguez e a falta de decência de suas vestimentas. Embora a racialidade não esteja expressa diretamente, é ela que define os vetos.

O parque sinalizado como público pode ser encarado, então, como um órgão regulador, um instrumento da domesticação de corpos e um fragmento de um projeto eugenista, onde apenas seria incorporada uma pequena mostra de uma sociedade desejada para o futuro do país. 

Mesmo no Séc. XX, temos situações como a elencada por rafael amorim na instalação Caranguejo da Praia das Virtudes (2023), que traz parte dos momentos vividos nesse espaço por Madame Satã, identificada como transformista, capoeirista e malandra, proibida de frequentar o jardim durante o dia com suas amigas, tendo sua presença permitida apenas no horário noturno. Em Passeio Público, o artista ficcionaliza um parque que monumentaliza essa identidade, recebe Madame Satã com suas amigas em uma roda e permite a troca de afetos em plena luz do dia.

Falamos, na contemporaneidade, de um outro contexto, onde não há proibições expressas para a entrada no Passeio Público, mas ainda há a vigilância e abordagem a pessoas consideradas “suspeitas” pelos padrões de raça e classe do Estado, embora sejam elas, as pessoas que não são desejadas circulando pela cidade, as que ali encontram algum refúgio.

Do monumento à vida

Concluo com aquilo que, enquanto narrativa curatorial, é o princípio de tudo, a nossa chegada à exposição. Em Tributo à vida e obra de Mestre Valentim da Fonseca e Silva, 2023, Moisés Patrício devolve a monumentalidade às dimensões de uma trajetória que não foram dignificadas pela história oficial. Se historicamente é considerado irrelevante o fato de Mestre Valentim ser um homem negro, menos ainda se reconhecem os diversos outros passos de um sujeito que teve outras vivências que não aquelas a serviço da consolidação de uma visualidade europeia na cidade do Rio de Janeiro. O ocultamento de uma trajetória tem o objetivo, também, de velar a autoria e a subversão em suas obras que, ora reverenciam um território ancestral eternizando vidas nativas, ora reivindicam as possibilidades do brincar para aqueles que só podem viver se forem úteis, vetados das oportunidades de lazer.

Convidando-nos a percorrer esse caminho, Moisés elenca, na sinuosidade dos vasos de barro, cada ano vivido por esse indivíduo, nos instigando a imaginar quais lembranças, afetos, tristezas, alegrias e conquistas estavam presentes nos detalhes que não foram documentados. A história escondida foi virada, depositada no chão da galeria, não pode ser movida sem se espalhar pelo espaço.

Esta exposição não evita o conflito, que é tão intrínseco a esse eixo conceitual, mas reivindica a reelaboração de histórias, memórias e territórios a partir da coexistência. Aqui, são encontrados múltiplos elementos, fragmentos que não necessariamente se encaixam, um acúmulo de perspectivas, de olhares e de conexões. É na pluralidade de pessoas, de fabulações, vozes e imaginações que podemos recuperar as camadas mais escondidas pelos fracassados projetos de simplificação das existências nesta terra.