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Caminhar. Não exatamente como quem faz um passeio. Mas como quem aproveita encruzilhadas para embaralhar os sentidos, dando ênfase e fluxo às vias marginais. Ou como quem levanta a poeira de antigos aterros. Ou como quem arrasta o pé no chão até que se levante a faísca dos encantamentos.

Não me parece acaso que os três trabalhos de performance propostos para o dia da abertura e uma das obras pensadas para dentro da galeria de Passeio Público sejam sejam constituídos por caminhadas.

O avançar para o fundo e para dentro do parque (o da cidade, o de cada pessoa) como um percurso multitemporal, nada cronológico, que se banha das enxurradas imaginárias e cria a possibilidade de construção de infiltração de novas memórias.

Passear não deveria ser também uma espécie de soluço na vida ordinária, um estado do qual é possível vislumbrar o extraordinário?

E por que Passeio Público? Porque o jardim projetado por Mestre Valentim é um espelho para o Brasil e seus soterramentos, mas também suas infiltrações. O Rio de Janeiro é exemplar para entendermos a dizimação dos povos originários e a tortura das populações afro diaspóricas. Mas radical na resposta à violência. Esta réplica tem como alicerce a cultura de ressocialização dos povos marginalizados. O jardim de lazer criado para deleite da elite colonial pôde ser uma fresta para o encantamento do território.

Reconexão e oferenda

Os trabalhos andarilhos de Passeio Público percorreram o parque com um procedimento de encantaria. No dia de abertura, a primeira caminhada foi A fonte e a noiva, trabalho de Luana Aguiar, que estendeu um tapete de flores brancas para Nicolina Vaz de Assis, uma das primeiras escultoras do país, e a única artista mulher com uma obra no Passeio Público, a escultura Tritão, o deus do mar, criada originalmente para o aquário que funcionou no Passeio Público. Ao convidar um grupo de mulheres para tecer um caminho entre o portão principal e a obra, hoje localizada numa ilha artificial no córrego do jardim, Luana fez a sobreposição de dois campos semânticos.

Um deles acessa o universo funerário das coroas de flores e tapetes de pétalas da Semana Santa, lembrando a morte simbólica de Nicolina e a baixa visibilidade de seu trabalho artístico.  O segundo, mais ligado a outros saberes e fés, aproxima a proposta de ação coletiva de uma espécie de oferenda, por meio da qual a artista busca uma reconexão com Nicolina, presentificando e ressignificando sua importância.

Outros importantes trabalhos de Passeio Público fizeram caminhadas trançáveis à de Luana.  Gilson Plano cria uma espécie de lápide, que também pode ser um mapa. A obra em granito negro se refere ao desaparecimento de uma escultura de Mestre Valentim que ficava no verso da Fonte dos Amores: um menino, que em uma das mãos trazia um jabuti; na outra, a tal faixa, com o dizer “Sou útil ‘inda brincando”.  Seria a frase de Valentim uma ironia com o jardim que não havia sido feito para negros como ele? Ao fato de, no Rio setecentista, a atividade artística, em sua “inutilidade”, não ser considerada séria o bastante para ser respeitável? É digno de nota que os dois maiores escultores do barroco brasileiro – Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e Valentim – tenham sido homens negros, a quem se entregava todo o tipo de trabalho manual. É mais notável ainda a gigantesca subversão que eles desencadeiam a partir do lugar supostamente subalterno. Constroem nosso imaginário barroco com santos samurais, que tinham como modelo as figuras humanas na porcelana vinda de Macau, também colônia portuguesa; criam  reis magos negros orientais; inventam um vocabulário para assinar com imagens as obras que deixariam para posteridade.

Se Gilson Plano aponta para o menino e a faixa desaparecidos, Eloá Carvalho se debruça sobre outras ausências. Numa série de aquarelas sobre papel, ela pinça frases a respeito do Passeio publicadas em textos de ficção ou na imprensa. Sem imagens (na verdade tratando o texto como uma),  a obra é mirante e miragem, através dos quais o visitante da mostra pode acessar paisagens reconhecíveis apenas do lado de dentro, onde habita a memória. A artista também reconstitui em pintura pavilhões que abrigam um complexo de diversão, projetados em 1922 e concluídos em 1926, demolidos apenas 11 anos depois de sua inauguração. A artista evidencia que uma cidade só existe no tempo como um conjunto de ruínas à deriva, e essas ruínas são como placas tectônicas movimentando-se no magma da história: quando se esbarram, podem provocar abalos e reconfigurações.

Bárbara Copque  é uma espécie de avesso que confirma a melancolia desses trabalhos sobre recalques e desaparecimentos.  Uma de suas obras acessa a memória do baobá, árvore ancestral das cosmogonias africanas, que a artista transforma em substantivo feminino. Aderida à parede da exposição como pele de lambe-lambe, a baobá reconhece a importância das cascas, das rugosidades como testemunhos da história de um corpo ou de um território. No outro conjunto de obras para Passeio Público, a artista usa a fotografia lenticular para pensar o tempo das imagens. Ao acessar essa técnica anacrônica, Barbara convoca o observador ao movimento. Refletindo sobre os quiosques e as carrocinhas de comida, a artista, também antropóloga, se conecta às comidas da história do Passeio como bori. Já ao se debruçar sobre as cadeiras de engraxates inativas, que se multiplicam em torno do parque, Barbara lembra, como dissemos no texto sobre sua obra neste catálogo, aqueles que tinham ou não tinham direito aos sapatos para passear.

Uma das fotografias lenticulares de Bárbara Copque: tempo que inocula outro tempo

Incorporação e presença

Acompanhada pelos passos de Bárbara, chego à segunda caminhada da abertura da mostra: a versão da performance Trouxa corpo, de Mariana Maia, especialmente repensada para Passeio Público. Com suas parceiras de ação, a artista lavou “a roupa suja da história”, como sugere a frase pintada em um dos tecidos de seu varal dedicado à orixá Olossá, que integra a exposição nas galerias.  Incorporando as lavadeiras da sufocada Lagoa do Boqueirão, as  mulheres negras participantes da ação desamarraram suas trouxas com imagem de outras mulheres, fazendo com que figuras como Tereza de Benguela e Marielle Franco, banhadas pela memória das águas salobras, pudessem ser corporificadas e presentificadas diante dos que assistiam.

Quando o Passeio foi aberto, mulheres com as performers de Trouxa corpo não eram bem-vindas nas suas aleias, por desempenharem papéis cristalizados na sociedade da cidade com a maior movimentação escravista das Américas. Os trabalhos de rafael amorim e Mano Penalva se relacionam diretamente com a interdição do Passeio para determinados corpos e/ou com sua domesticação e vigilância na época da criação do jardim.

Como lembra Carolina Rodrigues em seu ensaio para este catálogo, a exigência dos sapatos – que Bárbara Copque evoca, e eram inviáveis para pessoas escravizadas – foi um dos subterfúgios para controlar e filtrar quem tinha acesso ao jardim de prazer construído pelo vice-rei. As estratégias de interdição e controle perduram até o século XX e, em Caranguejo da Praia das Virtudes, rafael amorim busca reescrever esse passado ao recombinar as experiências de Madame Satã e suas colegas de malandragem e capoeira no parque, ao qual só tinham acesso na sombra, nos horários em que os “homens de bem” poderiam se relacionar com os segmentos purgados do convívio de sua famílias na hipocrisia e na penumbra.  Ao projetar no chão da galeria uma roda com os nomes do malandro com suas companheiras, amorim reivindica a reincorporação dos apartados e a movimentação das narrativas.

Com Bibelot, Mano Penalva pensa diretamente na gentrificação do espaço urbano a partir das histórias do Passeio. Ao criar uma banca de camelô com pequenos bibelôs de louça transparentes no formato de patos e cisnes,  o artista se relaciona diretamente com o modelo que inspirou o Passeio e outras obras do Rio de Luís de Vasconcelos: a política pombalina para a Lisboa depois do terremoto de 1755, em que mais iluminação, mais lugares de encontros ao ar livre, obras de saneamento e um discurso sobre higiene significaram uma tentativa de ampliar o controle e a manipulação espetacular da população.  No entanto, ao imaginar as aves de louça como frágeis produtos de um tabuleiro ambulante, Mano destaca trânsitos sociais a partir de uma noção de capilaridade, troca e circulação.

Detalhe de “Bibelot”, de Mano Penalva: fragilidade dos materiais amplia duelo entre a gentrificação e a recombinação semântica e a circulação sugeridas pela banca de camelô

Os bichos do Passeio, tanto os reais quanto os plasmados pela febre do delírio, inspiraram trajetos percorridos na exposição. Raul Leal  investiga as espécies de animais e de plantas do jardim público na atualidade e um tempo passado específico, a reforma empreendida pelo paisagista francês Auguste Glaziou no século XIX. Além de refletir sobre o confinamento daqueles exemplares considerados “exóticos”, Leal pensa nas estratégias de reocupação do Passeio pelas espécies nativas nos momentos em que o parque é abandonado pelo poder público. Outro ponto importante no trabalho é uma espécie de ciclo alquímico que se dá pelo fogo. Se os animais representados vivos são criados em pirografia (com a chama do fogo vertida em corpo), os mortos – cobras atropeladas, macaquinhos vítimas de eletrocussão – são criados com monotipias feitas de cinzas florestas queimadas, dando às imagens e ao material que as constitui a oportunidade de uma nova existência.

O calor que não vem do fogo, mas de uma espécie de febre, é o que parece animar os seres delirados por Zé Carlos Garcia. As relações que o artista estabelece para obtenção da madeira para a criação de suas esculturas Morre vive é feita com material vindo de poda urbana, enquanto, para as demais peças incluídas em Passeio Público, Garcia tira partido de uma metodologia desenvolvida em sua chácara, no interior do Rio. O artista retira do terreno árvores levadas para lá por antigos proprietários com fim extrativista, como o eucalipto, e busca reequilibrar o ambiente com o replantio de espécies nativas. Com essa atitude, o artista dá a esses seres que parecem vir de sonhos e pesadelos um poder real de intervenção no cotidiano.

O fogo promove uma transmutação histórica no trabalho de André Vargas. No verde da bandeira brasileira e nas imagens de chamas que se aproximam, em forma e tonalidade,  do losango de nosso símbolo nacional, a bandeira criada pelo artista busca reacender uma fogueira de consciência, repensando em como, sobre os ombros de homens e mulheres, recaíram  a construção, não apenas do Passeio Público, mas de cada prédio existente no Rio de Janeiro.

E não se trata só daquilo que é arquitetura. Há fundamentos ainda mais sólidos da desigualdade brasileira no campo do patrimônio simbólico, especificamente da língua, nos nomes que damos às coisas. No conjunto de esculturas apresentado por Diambe da Silva, as duas peças que formam Amor e saudade se relacionam com os textos gravados por Mestre Valentim e o vice-rei Luís de Vasconcelos nas pirâmides do Passeio (“Ao amor do público” e “À saudade do Rio”). As esculturas de cerâmica remetem diretamente ao Pão de Açúcar  e ao fato de o maior ícone da paisagem carioca aludir, assim como “Brasil”, a um processo extrativista. Se no nome do país lembra-se a brasa, mas também a madeira que era arrancada do nosso solo para viabilizar o tingimento de tecidos e a expansão têxtil, a expressão que batiza a montanha alude aos torrões gerados depois do processamento da cana, que partiam nos porões dos navios para alimentar a Europa.

Diambe da Silva:  alusão ao Pão de Açúcar e ao extrativismo colonial na linguagem

Transmutação e cura

Caminhar para o interior do Passeio, para que do ventre das linguagens o jardim de Valentim refloresça.

Quem sabe isso possa acontecer nos vasos de cerâmica de Moisés Patrício, que imaginou um trabalho em que se caminha sobre Valentim – ou na direção dele. Ao serpentear sobre os vasos de cerâmica que aludem aos 68 anos do artista, o público é convidado a pisar com cuidado num solo onde estão os ataúdes dos antepassados, mas também a participar da colheita daquilo que Valentim nos deixou. O percurso parte de um vaso revestido de ouro, percorre dezenas de outros recipientes emborcados para baixo (cápsulas do passado e sementes do futuro), e termina com um pequeno conjunto de vasos maiores como cálices, virados para cima. Os Ibejis, orixás gêmeos e crianças, concluem uma espécie de ciclo infinito de transformação que entrega o homenageado à luz e à alegria.

Moisés Patrício: caminho que reencanta e ritualiza a trajetória de Mestre Valentim

Nova alquimia. Haverá outras.

Na terceira performance apresentada na abertura da exposição, e último dos quatro trabalhos diretamente ligados ao ato de caminhar, Ronald Duarte convoca inúmeros arquétipos da história das imagens para o próprio corpo para capturar uma imagem que, dias depois, estaria sendo multiplicada em muitas variantes ao redor do mundo. Amor carnal tingiu a Fonte dos Amores de vermelho e tirou a relação entre garças e jacarés do gerúndio, sintetizando as violências do período colonial, com a dizimação dos povos  originários e a tortura de reis e rainhas sequestrados na África. Mas não somente: Ronald também vislumbra, no assombro do Passeio, um genocídio em curso, com mísseis matando crianças e mulheres em massa na Faixa de Gaza e o baixo aprendizado da humanidade com as desgraças que engendrou no passado. A partir de seu trabalho e do interesse de artistas estrangeiros, fontes foram tingidas de vermelho no Porto, em Londres e em Bruxelas, denunciando os crimes de guerra e pedindo o cessar-fogo.

Ainda é preciso, mais do que rever, desver. Em seu texto para este catálogo, Paula de Oliveira Camargo comenta a importância das imagens produzidas por Denilson Baniwa a partir das pinturas ovais criadas por Leandro Joaquim para os mirantes do Passeio Público.  Se, no século XVIII, Joaquim naturaliza a matança das baleias ou a existência de um aqueduto na Lapa que antes era o território tupinambá, Denilson propõe bifurcações nessa via de mão única. Traz do Japão, ilha pesqueira, a onda de Hokusai para auxiliar as jubartes em sua vingança contra os arpoadores e insere um jacaré, vivo e livre,  que parece digerir arquiteturas, portugueses e massacres enquanto nos traz um lugar existente antes do Rio, bem como as histórias que precisamos imaginar.

Detalhe da obra de ana kemper: velar os textos para iluminá-los

Denilson poderia caminhar ao lado de ana kemper. Na contribuição para o texto sobre a artista nesse catálogo, procuro debater como ela usa a fita isolante preta para velar trechos de livros. É um véu, sepultamento, mas também uma vela, iluminação. A ocultação de determinadas partes acaba trazendo à luz os escritos que não foram cobertos e que, somados aos demais, forma um texto tecido na diversidade de escritas e infiltrado com imagens das águas do Passeio e com os cheiros vindos de pimenta rosa, jurema e colônia. A Mata Atlântica como um espectro olfativo, abraçando o corpo para convidá-lo a outras percepções.

Palavras, palavras, palavras. Não são elas minha própria caminhada?

Começo então a preparar uma pausa nesses passos por tantos Passeios enquanto converso com dois trabalhos que aludem, direta ou indiretamente, às garças criadas por Mestre Valentim para a Fonte dos Amores, trançando a imagem das aves com a escuridão e o lusco-fusco das estrelas e das lanternas narrativas.

Com Esgarçamento, instalação de Gabriel Haddad e Leonardo Bora, as três aves que faziam companhia aos jacarés, e foram exiladas do Passeio, aparecem como um espectro de lanterna mágica, que projeta sua ausência para o fundo de todo o ambiente, assim como a trama de lã, costurada em ziguezague, que tenta dar sustentação ao buraco deixado em grandes lençóis – lagos ou piscinas de mergulho azul.

É também feita de desaparecimentos a literatura visual de Ivan Grilo, uma odisseia cuja carta de navegação vem do céu estrelado, para onde é possível olhar enquanto se escreve. Da estranheza do Passeio à descoberta dos passeios, tudo parece ficar mais nítido sob o véu da noite (como aquilo que a fita isolante de ana kemper revela enquanto esconde).

É nessa noite que talvez possamos recosturar com as lãs de Bora e Haddad não apenas os espaços entre as estrelas, também o contorno de prédios, estátuas de meninos, baobás, uma lagoa, alguns sapatos, o território dos tupinambás, a liberdade.

Bora e Haddad, silhuetas e lanterna mágica: esgarçar a memória e ao mesmo tempo cerzi-la

No escuro dessa noite, pareço ouvir o farfalhar de asas e entender que a devoração do amor carnal não era a única alternativa para o encontro das garças com os jacarés. Não as vejo, mas talvez possa as ouvir gazeando, melodicamente:

“Não temas, minha donzela, nossa sorte nessa guerra”.

Para que o escuro dessa noite me ajude a fazer parte do coro, volto ao início do texto, e dou-lhe o título como quem canta. E começo a reler, retomando meus passos e minhas notas nessa história coletiva.