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O que se vê primeiro é a sombra. Ela ricocheteia pelo teto e pelas paredes, até que Wendy tem a ideia de costurá-la. Depois que sua silhueta é cerzida, Peter Pan pode ganhar substância, materializando-se diante de sua parceira de afeto e aventuras. Ao longo de sua fértil trajetória como artistas visuais, Gabriel Haddad e Leonardo Bora também têm bordado imagens e histórias, mas têm insistido em esfarrapá-las. 

Os desfiles do carnaval carioca assinados pela dupla estiveram frequentemente apoiados numa ideia de aparição (Exu, Arthur Bispo do Rosário, Joãozinho da Gomeia). Em Esgarçamento, isso é retomado com uma grande voltagem simbólica: na instalação monumental, os artistas recortam três silhuetas das garças criadas por Mestre Valentim em lençóis tingidos de azul. O espaço vazio deixado pela forma dos pássaros é então costurado em ziguezague, e o projeto de iluminação criado por Antonio Mendel para a mostra transforma a parede atrás do trabalho em lanterna mágica. Mito da caverna. Corisco na escuridão.

Alumbramento: a fluidez do tecido permite que voemos a partir das garças, menos com seu contorno definido e mais com sua ausência, com a lacuna que as diagonais de linha materialmente estruturam e simbolicamente estiram. É essa imagem lusco-fusco – cheia de camadas e instável – o que bate asas. Ela nos traz a lembrança de que a história e a arte são moventes e podem alcançar dois infinitos: o da profundidade da silhueta que dança com a luz e o da recostura do corpo andrajoso a partir da memória e do desejo.


Gabriel Haddad e Leonardo Bora em Passeio Público.
Esgarçamento (detalhe), 2023 
Tecido, lã e tinta a base d’água 
Colaboração: Gilmar Moreira, Giovanna Sank, Jovanna Souza, Rafael Vieira, Sophia Chueke e Theo Neves
Dimensões variáveis
Fotos de Tiago Morena.