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Freud disse que o inconsciente é uma cidade que se mostra na dobra entre ruínas arqueológicas – que indicariam as impressões de uma civilização soterrada e a superfície. Para ele, aquilo que está enterrado se comunica na contingência, nas entrelinhas: uma maneira de dizer que o que foi soterrado, esquecido, recalcado, jamais irá perecer. Está preservado de alguma maneira e pretende retornar, ser “trazido de volta à luz”. Seu grande exemplo é Roma, tanto na Interpretação dos sonhos (1900),  quanto em O mal-estar na civilização (1930). Acompanhando a posição  de outros pensadores, tais como o historiador da arte suíço Jacob Burckhardt (1818-1897) e o antropólogo, também suíço, J. J. Bachofen (1815-1887), Freud diz que as ruínas, isso que está soterrado, seriam como um texto que indica, nas margens e sutilezas dos pequenos ditos, a presença da cidade desaparecida. 

Em Delírios e sonhos na gradiva de Jensen (1906), Freud recorre a uma obra literária do escritor e poeta alemão Wilhelm Jensen para a aproximar a ação do Vesúvio na cidade italiana de Pompeia com o conceito de recalque (Verdrängung). A cidade e toda a população soterrada ganhariam vida ao meio-dia, disse o poeta. O arqueólogo Hanold, herói do conto de Jensen, desvela aquilo que se apagou sob as lavas do vulcão. Freud escreve uma carta a Jensen dizendo que somente ele, o artista, havia compreendido através de seu texto aquilo que toda a comunidade médica a que ele se dirigia exaustivamente não fora capaz de entender: o mecanismo do recalque; a estrutura do inconsciente em seu aspecto topológico e dinâmico; e a função do analista. 

Duas cidades históricas italianas até Baltimore

Anos depois, Lacan no seu esforço de retomar Freud ao pé da letra, na ocasião de uma conferência nos EUA na década de 1960, diz:

“Preparei esta palestra nas primeiras horas de uma manhã. Pela janela, eu via Baltimore, e era um momento muito interessante. Ainda não havia amanhecido inteiramente. Um anúncio luminoso me indicava as horas minuto a minuto e, naturalmente, havia intenso tráfego. Disse a mim mesmo que tudo o que eu podia ver, exceto algumas árvores ao longe, resultava de pensamentos, pensamentos ativamente pensantes, nos quais não era totalmente óbvia a função desempenhada pelos sujeitos […] A melhor imagem para representar o inconsciente é Baltimore ao amanhecer. Onde está o sujeito? É preciso achá-lo, como se fora um objeto perdido”.

O inconsciente freudiano é aquilo sobre o que sabe-se muito pouco, de que não se faz possível representação. Portanto, o inconsciente está sempre a ser definido, pois não se sabe bem o que é. O psicanalista Éric Laurent, em seu texto Cidades analíticas, afirma que  Lacan conseguiu transmitir a estranheza do inconsciente ao defini-lo como “Baltimore ao amanhecer”, pois em uma frase simples ele indica um lugar – uma cidade sem profundidade histórica, mas o lugar onde seu público estaria reunido, um lugar com estrutura de cidade e com uma indicação temporal: o amanhecer. Laurent diz que cada um desses elementos deve ser tomado em sua particularidade. Nesse sentido, o texto de Lacan, citado acima, pede por detalhamentos. 

Laurent diz que a indicação do tempo aqui é crucial. Trata-se do amanhecer, do despertar antes do dia começar: “noite sem estrelas” marcada pela temporalidade de um relógio cor néon que marca a passagem do tempo e, sobretudo, a  insistência pulsional, aquilo que não cessa. O observador (o próprio Lacan) está imerso neste espaço-tempo.

De Baltimore para o Rio de Janeiro
“Lagoa do Boqueirão antes da Lapa”, de Denilson Baniwa: desmontagem da história em uma imagem

A exposição Passeio Público traz um “inventário de ausências” a partir do qual uma “lista de desaparecimentos ganha corpo”, escrevem as curadoras Carolina Rodrigues, Daniela Name e Paula de Oliveira Camargo (leia o texto de apresentação da mostra clicando aqui). O que se encobriu com o aterro da Lagoa do Boqueirão? Em Lagoa do Boqueirão antes da Lapa, o artista Denilson Baniwa desfaz, tal como o arqueólogo de Freud, as camadas de aterramentos, desmontando a história em uma única imagem, criada por ele como resposta à violência colonial. O artista parece antecipar, como Freud indicou, um retorno disso que se recobriu com terra: o retorno do recalcado, expressão freudiana para o indomesticável do inconsciente, como a água da chuva que alaga o Passeio para não deixar esquecer que lá ainda há uma lagoa pulsante. 

Eloá Carvalho também sustenta em sua delicada pintura um retorno ao que não existe mais, senão como memória. Com tinta óleo, ela recria uma imagem, uma paisagem que se apagou. É silenciosa, onírica – imagem esfumaçada, que agita qualquer coisa entre o sonho e o despertar. É o amanhecer a que Lacan se refere. 

No outro trabalho da artista, sob o título Contradições, vemos as edificações demolidas através de textos. Edificações que se tornaram um “trambolho” – expressão recolhida pela artista em sua pesquisa nos arquivos de época. ‘Trambolho’ pode ser pensado como algo de grandes dimensões, porém inútil. É desagradável, pejorativo. Mas trambolho pode alcançar o sentido de amarras, de domínio. A artista está avisada da polissemia da palavra, e recorre ao desenho/pintura (aquarela) para reescrever, letra por letra, os textos jornalísticos e literários que noticiam este processo de apagamento. Eloá soletra o apagamento. 

Detalhe de “Contradições”, de Eloá Carvalho: artista soletra o apagamento da região

A artista ana kemper também recorre ao texto, produzindo com fita um apagamento em um conjunto de livros que tratam, dentre outros temas, do processo de colonização. Cobrindo partes do texto, a artista interrompe o fluxo e a linearidade da escrita oficial e abre ao leitor, por esse recorte, novas narrativas, outras histórias, a dos “vencidos”, por exemplo – em termos Benjaminianos. E por que não dizer que, com esse novo texto, esculpido nas entrelinhas, a artista mostra “outra cena”, tal como Freud propôs no trabalho dos sonhos. 

Mano Penalva constrói uma miniatura do passeio. Mas não uma miniatura qualquer, mimética, como um arquiteto faria. Trata-se de uma miniatura onírica, portanto poética e avessa à representação. A sua paleta é azulada e translúcida, o que faz pensar que é possível ver a lagoa mesmo soterrada. Seu Bibelot não só redesenha a geometria do Passeio sob o traço de Mestre Valentim, como se utiliza de certa ironia. É irônico porque é francês: a encomenda do vice-rei (Luís de Vasconcelos) a Mestre Valentim era a de um “jardim francês retilíneo, de alamedas bem ordenadas” (de acordo com a curadora Paula de Oliveira Camargo – leia clicando aqui). É irônico porque evoca delicadeza na peça de vidro, para comunicar a brutalidade da invasão colonial. Continua irônico porque ressoa, aponta e desliza, ao nível do galicismo, ao termo souvenir:  esse objeto que faz referência ao que se quer como recordação, mas também como ‘lembrança’ – resistência ao esquecimento daquilo que sempre retorna, querendo ou não. 

“Bibelot”, de Mano Penalva: ironia com o jardim francês sonhado pelo vice-rei Luis de Vasconcelos

Passamos pela coleção de várias obras, um conjunto extenso de pesquisas e trabalhos desses artistas que compõem a exposição: ana kemper, André Vargas, Mariana Maia, Bárbara Copque, Diambe da Silva, Gabriel Haddad e Leonardo Bora, Gilson Plano, Ivan Grilo, Luana Aguiar, Moisés Patricio, rafael amorim, Raul Leal, Zé Carlos Garcia. 

Encerro esse ensaio dedicado à exposição entendendo que há aqui um coletivo de textos, de obras e pesquisas que se debruçaram de forma decidida a escutar, cada um à sua maneira, cada artista e cada curadora à sua maneira, embora todos juntos, os ruídos do Passeio. Cada um, novamente à sua maneira, inscreveu suas pesquisas neste projeto para “lavar a roupa suja da história” – expressão contundente de Mariana Maia que nos faz lembrar de Walter Benjamin; ou para contar a história daqueles que “tinham ou não tinham direito aos sapatos” (referência ao texto de Daniela Name sobre o trabalho de Bárbara Copque – leia clicando aqui).

Detalhe da obra de Mariana Maia, que atualiza frase de Walter Benjamin sobre a história a contrapelo

Na saída da sua conferência em Baltimore, Lacan diz: “você, que me escuta, sabe que está submerso, no próprio lugar do inconsciente. O inconsciente está em você e você está nele. Trata-se de um lugar de vida.” Acrescentaria: um lugar de vida e de disputas. Portanto, o inconsciente, hoje, é o Passeio Público entre as 15 e as 17 horas.